Cada casa de Champagne tem um incansável enólogo que se debruça dia após dias sobre tanques de vinho reserva para criar os mais complexos e glamurosos vinhos. Na Lanson, essa responsabilidade é de Hervé Dantan. Chef de cave desde 2015, Dantan assumiu o lugar de Jean-Paul Gandon – que ficou no cargo por 42 anos – após dois intensos anos de transição.
Antes de chegar a Lanson, Hervé Dantan esteve por 22 anos à frente da cooperativa Mailly Grand Cru. De família de viticultores, Dantan cresceu em meio ao vinho e sua intimidade com as uvas pode ser percebida na forma simples (mas cheia de paixão) que ele se refere ao produto.
Em visita à Maison, em maio de 2019, tive a oportunidade de bater um longo papo com Hervé Dantan. O chef de cave falou sobre o estilo da Lanson, das práticas sustentáveis que a vinícola está envolvida e também abordou temas mais polêmicos, como o uso de sulfito. O resultado dessa conversa você confere logo abaixo.
Entrevista com Hervé Dantan, o chef de cave da Lanson
A Lanson é um champagne que não passa pela fermentação malolática. O que isso representa de fato no estilo da casa?
Hervé Dantan: Quando se faz um vinho sem a fermentação malolática o que se busca é o frescor natural da fruta, aromas com notas mais frutadas e menos manteiga ou brioche. Um vinho mais dinâmico e vibrante. De fato, nós temos um estilo majoritariamente não-malolático, mas isso acaba por não ser muito comunicado. Não por ser algo que não nos orgulhamos, muito pelo contrário. Há muito orgulho nisso. É mais por uma questão de entendimento, muitas pessoas acabam por não assimilar corretamente o que é realmente isso.
Na verdade, até a década de 60, todas as casas de Champagne trabalhavam da mesma forma: evitando a fermentação malolática. [Pois acreditavam que esse episódio se tratava de problema no vinho]. Quando passaram a entender esse fenômeno, a malolática tornou-se uma aliada. Uma ferramenta prática para ajudar a arredondar o vinho de maneira mais rápida e mais barata. Isso aconteceu em uma época em que a demanda por champagnes estava em crescimento e as empresas precisavam disponibilizar os vinhos mais cedo. Devido a isso, as cassas optaram por adotar e divulgar que faziam a fermentação malolática e seus vinhos podiam ser comercializados dentro de 15 meses ou dois anos de estágio. Apenas poucas Casas mantiveram a forma tradicional: além de nós, a Gosset, Louis Roederer, Alfred Gratien e, à época, Piper-Heidsieck.
Leia nosso artigo sobre fermentação malolática para entender melhor sobre o assunto.
Existe alguma dificuldade maior em produzir champagne sem fermentação malolática?
HD: Nós somos uma das poucas casas que ainda mantém a tradição da vinificação evitando a fermentação malolática. Mas não que isso seja por ser mais difícil, ou por melhor ou pior, mas sim por uma questão de estilo. À época, a família optou por manter a tradição do seu champagne para manter o estilo que já era produzido. É possível encontrar grandes champagnes com ou sem Fermentação Malolática.
Hoje nós fazemos um pouco de fermentação malolática também. Até 2014 éramos mais pragmáticos em evitar totalmente a malolática, mas hoje assumimos uma maior flexibilidade. Se for necessário fazer malolática de um vinho, tanque ou plot para beneficiar o vinho, nós fazemos! Cerca de 20 a 25% do nosso blend passa por fermentação malolática. Mas mantém o estilo de frescor e “frutalidade” da Lanson. Nós não queremos incrementar o aspecto FML em nossos champagnes.
Eu costumo dizer que essa prática tem nos colocado ainda mais próximos do método tradicional de produção de champagne, mais até do que éramos há cinco ou seis anos atrás. Pois antes da década de 1960, como não havia conhecimento sobre a malolática, era comum que parte do vinho fizesse a malolática e mesmo sem saber o que ou como aquilo havia ocorrido, o vinho era por vezes aproveitado no blend.
O desafio é alcançar o “balance” entre a frescura e maturidade, evitando que o vinho fique muito áspero, abrupto. Para isso é necessário aguardar a maturidade das uvas em cada plot e também um maior tempo de envelhecimento e jogar com os vinhos reserva, para que o vinho ganhe profundidade e cremosidade. Por conta disso, nosso vinho de reserva utilizado no Non Vintage Cuvée, o Black Label, tem cerca de dez safras distintas em seu blend, o mínimo de quatro anos de maturação e no mínimo seis meses de estágio após o degorgement.
A empresa fez um grande investimento em 2014 para modernização da adega construção de um espaço para envelhecimento do vinho em madeira, o que isso trouxe para o vinho?
HD: O investimento foi feito para aumentar nossa capacidade de fazer a vinificação por plots e também para o envelhecimento dos vinhos de reservas. Nós guardamos aqui plots muito especiais, Grand Crus e Première Crus que vão para nosso reserva e para outros vintage cuvées especiais. O uso dos barris de madeira é muito recente, mas tem se demonstrado muito interessante e útil. Nós escolhemos cascos de maneira singular, com madeiras de três regiões distintas para melhor adequar com cada tipo de vinho.
O que o estágio em madeira trouxe para o vinho? Era o que eu você esperava?
HD: É difícil antecipar o que o envelhecimento vai trazer, mas nós buscamos incrementar o corpo, a profundidade e a cremosidade do vinho. Alguns outros aromas são também positivamente incorporados, mas esse não é o objetivo. Nós não queremos dar ao vinho notas de baunilha ou tostado. Nada disso. A ideia é utilizar a micro-oxigenação para abrir uma maior dimensão para o vinho, é como um tempero. Apenas uma parcela do vinho que usamos passa por madeira, cerca de 7%. Leia mais sobre a produção de vinhos espumantes.
Qual a relação da Lanson com a agricultura orgânica?HD: Nós temos uma das maiores áreas de vinhedos orgânicos e biodinâmicos em Champagne, com certificação Demeter (17 hectares). Nós também estamos muito envolvidos com a viticultura sustentável – todos nossos vinhedos são cultivados de modo sustentável – e atuamos de maneira bastante próxima aos nossos produtores parceiros para incentivá-los a desenvolverem a viticultura orgânica e sustentável.
Nós acreditamos no que a VDC (Viticulture Durable en Champagne) prega, que o futuro da viticultura em Champagne é a orgânica e sustentável. Esses são os dois objetivos a se trabalhar. Orgânico é o mais alto nível de ambição, mas que envolve alguns riscos econômicos. Já a viticultura sustentável é também bastante ambiciosa, mas respeita a economicidade, não se utiliza herbicidas, os pesticidas são reduzidos e possibilita desenvolver nosso conhecimento sobre a biodiversidade e o meio ambiente. Acredito que em cinco anos já não haverá herbicidas em Champagne.
Quais os desafios para a agricultura orgânica em Champagne?
HD: Em Champagne é muito difícil ser orgânico. Quando se produz em outras regiões, onde o clima é melhor, sem chuva, é possível ser orgânico. Nós somos orgulhosos do nosso vinho Bio e de nossa produção orgânica, mas é necessário compreender tudo que é feito para conseguir isso. Eu sou entusiasta da questão natural do vinho. Mesmo em nossa produção tradicional, se compararmos o que era utilizado há 10 anos com o que temos hoje, nós já não utilizamos quase nada. Nós não somos “nature”, no senso estrito da palavra, mas utilizamos cada vez menos aditivos. Para mim, o conceito de vinho “nature” é um pouco fantasioso, assim como a viticultura “nature”. É possível uma pessoa criar uma videira, no vaso ou jardim sem aditivos, e obter uvas. Mas quando se fala de um produtor com vinha de vários anos em um clima como o de Champagne, é totalmente diferente.
Eu sou muito confiante no futuro da viticultura em champanhe, eu sou filho e neto de viticultores. Meus avós eram produtores biológicos, pois naquele tempo não havia pesticidas para lutar contra as pragas. É possível caminhar para essa direção, pode ser difícil, pois algumas vezes perde-se um pouco na colheita. Em resumo, eu acredito que é possível crescer bastante a área de cultivo orgânico em Champagne, mas em alguns plots é necessário manter o cultivo sustentável, não orgânico.
O uso de sulfito é um tema muito debatido nos dias de hoje, a ponto de estar sendo “criminalizado”. A Lanson como defensora das práticas orgânicas/sustentável como vê essa vertente?
HD: Esse é um tema chato, pois virou um dogma hoje em dia. As pessoas parecem que esqueceram tudo que se aprendeu sobre o vinho ao longo dos anos. A cultura do vinho na França, e em todos os lugares, é a experiencia do homem com o terroir, com a vinha, seu trabalho seu conhecimento. É impossível deixar um barril lá e o vinho ficar pronto e perfeito. É necessário trabalhar, bombear, checar, provar e, se for necessário, utilizar métodos que não são naturais. E os sulfitos, mesmo nós que temos uma produção não malolática, utilizamos cada vez menos. Existem pessoas que colocam no rótulo “sem sulfito”, mas quando se analise o que foi feito para não utilizar sulfito, vemos que não faz sentido. É mais uma questão de marketing.
É a mesma coisa de quando se discute a viticultura orgânica ou sustentável, existem pessoas que não acham “sexy” ser sustentável, tem que ser orgânico. Mas quando se observa a dificuldade para manter a produção em Champagne, percebe-se que às vezes é inevitável não recorrer ao uso de pesticida. Não estamos falando de inseticidas ou herbicidas, mas sim de um pesticida para combater um doenças em um clima tão complicado. Temos que poder trabalhar sem sermos chamados de terroristas.
Dentre os projetos do chef de cave Hervé Dantan está o Clos Lanson. Confira nossa matéria sobre esse exclusivo espumante elaborado com uvas oriundas de um vinhedo no coração de Reims.
O Reserva85 esteve na Lanson, em Reims (França), a convite da Maison.