Filoxera: a praga que mudou a história do vinho
No ano de 1863 o mundo do vinho se viu diante de uma crise sem precedentes: a filoxera. Um pulgão que ataca as raízes das videiras e mata a planta. A praga teve início no Rhône, na França, e se espalhou por todo o planeta, devastando cerca de quatro quintos de todos os vinhedos do mundo.
Estudos indicam que a filoxera foi levada da América do Norte para a Europa de barco, em 1850, escondida na raiz de uma variedade da espécie Vitis Riparia, não suscetível ao ataque do pulgão. Quando chegou na Europa, o inseto encontrou plantações de Vitis Vinifera que não possuíam qualquer mecanismo natural de defesa.
Como a filoxera se alimenta de novas raízes para sugar o suco celular, os vinhedos europeus eram o ambiente perfeito para se propagar. A disseminação do inseto é muito fácil e rápida, pois ele usa o próprio ser humano como veículo condutor. O pulgão se hospeda em botas e ferramentas e são carregados até outros vinhedos. A proximidade entre os países e a relação comercial entre eles possibilitou que a praga se espalhasse por todo o continente.
Filoxera e a descoberta do porta-enxerto
No início, os produtores não tinham o menor conhecimento do que estava matando as videiras. Como o pulgão ataca diversas partes da planta, como raiz e folhas, os produtores acreditavam que se tratava de doenças distintas. Outro ponto de dificuldade era o tempo de avanço da filoxera, que permanece por meses na vinha infectando-a silenciosamente.
Sem saber o que fazer para conter o alastramento, muitos atearam fogo às plantações. Foram mais de cinco anos para descobrir o que causava a morte das plantas e mais dez anos para encontrar uma solução para acabar com a praga. Uma medida paliativa desenvolvida na época foi enxertar vitis viníferas sobre pés de vinha americana.
Foi descoberto que as raízes de videiras americanas não eram prejudicadas com o ataque do pulgão. Com isso, foi criado o porta-enxerto, que corresponde a encaixar uma muda vinifera em uma raiz de videira americana já plantada no solo.
Estudos identificaram também que a filoxera não sobrevivia em solos arenosos. Por isso, algumas regiões do mundo foram poupadas dos ataques da praga. Colares, em Portugal, em que as vinhas são plantadas na areia, Santorini e a Sicília, por serem ilhas e terem solos vulcânicos conseguiram evitar a praga.
Algumas dessas zonas conseguiram manter seus vinhedos imunes sem precisar recorrer a enxertia e muitas delas ainda possuem vinhas pré-filoxera em pé-franco (videira vinífera plantada diretamente no solo sem o porta-enxerto) até os dias de hoje, como a região da Bairrada, em Portugal.
Filoxera na América do Sul
A epidemia foi um divisor de águas na produção mundial de vinho. Muito do que conhecemos atualmente é resultado de estudos pós-filoxera, incluindo regiões vitivinícolas. Como o cultivo de uvas na Europa estava em números críticos, muitos produtores passaram a buscar novas regiões como alternativa para continuar seus negócios e salvar suas plantas.
Diversos franceses e espanhóis se instalaram na América do Sul, principalmente no Chile. O país não foi afetado pela filoxera. Por estar protegido por grandes barreiras naturais (cordilheira dos Andes, deserto do Atacama e as geleiras da Patagônia) não teve suas vinhas atacadas pelo fungo, que não conseguiu transpor esses obstáculos.
Argentina e Uruguai registraram casos da doença. Com medo da praga se espalhar por seus territórios, promulgaram leis que proibiam a importação da Europa de videiras, adubo, fertilizantes, uva e folhas ou qualquer outro item que pudesse ser uma incubadora do inseto. Apenas produtos chilenos tinham autorização para entrar nos países, pois era uma área limpa da infestação.
Imunização chilena
O Chile manteve-se tão imune à praga que conseguiu preservar uma variedade de uva que estava extinta: a Carménère. Originária de Bordeaux, na França, a casta chegou ao Chile em 1850, treze anos antes da epidemia da filoxera. Durante esse período, diversas variedades de uvas foram varridas dos vinhedos franceses e a Carménère foi uma delas.
Conheça em detalhes uva Carménère
No Chile, a uva se adaptou muito bem e manteve o vigor mesmo enquanto o resto do mundo tentava controlar a devastação dos vinhedos. Mas um ponto inusitado nessa história é que por todo o período, a Carménère foi tratada como Merlot. Ou seja, nem mesmo os chilenos sabiam que se tratava de uma uva extinta.
Esse mal entendido só foi desfeito em 1994, com a ida do ampelógrafo francês Jean-Michel Boursiquot ao Chile. Em visita a alguns vinhedos, o especialista em folhas percebeu que havia diferença entre as variedades de Merlot plantadas e desconfiou que parte do cultivo fosse Carménère. Um teste de DNA confirmou a suspeita e em 1996, foi lançado ao mercado o primeiro vinho chileno rotulado como Carménère. Isso deu ao Chile o título de “país da Carménère”.
Filoxera no Brasil
O Brasil foi um dos países que não sofreu com a crise da filoxera. Por aqui, o cultivo de uvas viníferas era inexpressivo. Mas o que ajudou a preservar os vinhedos foi a grande presença de uvas americanas. Os pulgões se instalam nas raízes das uvas de mesa, que toleram o seu ataque. Até os dias de hoje é atribuído ao cultivo intensivo de uvas de americanas o controle do inseto, que não foi erradicado e continua tirando o sono de viticultores no mundo todo.
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